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A busca pela saúde: novo normal ou velho anormal?

  • Foto do escritor: Gabriel Pacheco
    Gabriel Pacheco
  • 19 de ago. de 2020
  • 7 min de leitura

Atualizado: 17 de mai. de 2021

Por Gabriel Pacheco (@gabrielzagopacheco)

(O texto a seguir foi produzido exclusivamente para o site Psicologia Pinheiro)



Apresentação do autor


Gabriel Pacheco é mestrando em Estudos Socioculturais e Comportamentais do movimento humano pela Escola de Educação Física e Esporte da USP, além de ser professor do ensino fundamental no município de São Paulo. Leitor assíduo, busca constantemente expandir seu conhecimento a fim de problematizar temas de seu cotidiano profissional.


Das brincadeiras e jogos enquanto éramos pequenos até os dias atuais, Gabriel se tornou para além de primo e familiar, uma referência de caráter e dedicação ao próximo. Estou certo de que compartilhar um texto de sua autoria feito especialmente para o leitor deste site é um privilégio que você poderá desfrutar a partir de agora.


Boa leitura!

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A busca pela saúde: novo normal ou velho anormal?


Ao receber o convite para escrever neste site, me deparei com dois sentimentos: gratidão por ter sido lembrado por alguém que me é tão caro, Raphael Pinheiro, psicólogo, primo, amigo e confidente; mas também pela dúvida sobre o tema que abordaria, afinal, nesta era pós-moderna, a sensação é de que todos os assuntos já foram explorados e dissertados em todos os espaços.


De imediato, posso dizer que em tempos de pandemia, o tema da busca por uma vida saudável está na “ordem do dia”. Entretanto, sobre o cenário que precedeu a maior crise de saúde do século XXI, já havia muito que se refletir a respeito da busca pela saúde na contemporaneidade, este sim, o tema que escolhi para esta conversa.


Graduado em Educação Física, trabalho há anos em dois diferentes campos: da promoção de saúde em academias e do ensino de Educação Física em escolas, sendo o último impulsionador de meu mestrado sobre a prática docente. A partir da experiência nesses contextos, busquei articular aspectos – sociais, políticos, filosóficos e psicológicos – acerca da busca pela saúde, me permitindo algumas perguntas iniciais sobre o tema: de que forma as regras e imposições de um suposto modo de vida saudável afetam nossas vidas? Por que questionamos e somos questionados o tempo todo sobre o que é certo comer, sobre o exercício que melhor funciona, sobre a quantidade ideal de sono, sobre a frequência ideal na academia, sobre o índice ótimo de peso e altura, etc? O que está em jogo, mas fora de cena na busca pela saúde?


Primeiras reflexões


No caminho de uma possível resposta, trago a provocação do filósofo Byung-Chul Han, autor citado na página inicial deste site. Ele diz, em seu livro “Sociedade do Cansaço” (2017), que “a pessoa sadia irradia um quê de mórbido, algo de sem vida”, e complementa: “Nós nos transformamos em zumbis saudáveis e fitness, zumbis do desempenho e do botox. Assim hoje, estamos por demais mortos para viver, e por demais vivos para morrer”.


Essa digna provocação aponta para o que o autor denominaria sociedade do cansaço, que diferentemente da sociedade disciplinar descritas por autores como Freud e Foucault, se caracteriza por um “excesso de positividade”. Esta discussão me remete ao debate que promovi num bloco de aulas com estudantes do ensino médio da rede pública de ensino do Estado de São Paulo. Depois de trazer conteúdos de fisiologia, biomecânica e anatomia nos bimestres anteriores, propus discussões em outros âmbitos, apoiado pelo currículo, mas usando minha autonomia de cátedra, pois em minha opinião, a escola deve sim “ter e tomar partido”.


Lembro-me que alguns destes estudantes ficaram surpresos quando comentei em uma das aulas que grande parte das academias não eram pensadas/projetadas para aqueles que mais precisariam delas, mas para um grupo de pessoas, semelhantes entre si, as quais claramente poderiam encontrar vários meios de se exercitar também fora dela. Como exemplo, citei que os aparelhos nas academias não são preparados para obesos e o ambiente não é preparado para idosos (dois dos grupos que mais sofrem com a perda de massa muscular, falta de equilíbrio e osteoporose), para dizer o mínimo.


Então, a quem atende o discurso de vida saudável e por que ele funciona tão bem? Do ponto de vista social, não precisamos ir muito longe para compreender ser mais fácil manter uma rotina de exercícios regularmente morando ou trabalhando próximo da academia, não cumprindo parte da jornada diária por longas horas no transporte público, não fazendo horas extras para complementar a renda ou fazendo atividades domésticas e cuidando de crianças - ressaltando principalmente a jornada por vezes tripla de muitos brasileiros. Nesse aspecto, também os grupos que mais precisam de atividade física orientada, dado o desgaste físico diário, seriam os que menos os podem acessá-la, recebendo apesar disso a mesma “positividade” e a urgência implícitas no discurso da busca pela saúde.


Recordemo-nos também de que um reduzido percentual da população faz exercícios regularmente; assim, é inegável que haja resultados, e nada desprezíveis para a saúde; todavia, esse chamado adere a uma restrita camada social, a saber: aquela que tem condições econômicas e sociais para tanto. São as imagens dos frequentadores das principais franquias de academias do país, por vezes patrocinados por marcas de suplementos e isotônicos que atingem a todos, como se grupos de diversos locais, com as mais diversas demandas e amplas dificuldades, de modo homogêneo tivessem a mesma condição de receber e seguir o estilo de vida referido.


E aqui assumo meu lugar de fala nesse discurso. Me considero privilegiado em vários aspectos: pelo “simples” fato de ser homem, branco e heterossexual; porque frequentei a educação básica sem me preocupar em trabalhar, porque tive múltiplos estímulos e o mais importante, os recebi satisfatoriamente para me tornar praticante de atividade física regular e, no limite, educador físico. Mas o que quero ressaltar aqui é justamente isso: um conjunto de fatores “produz” este indivíduo dito saudável. Eu me construí e fui construído no discurso da saúde; tudo se encaixou! Entretanto a coisa me parece ir além do aspecto financeiro e social.


Relembro que devido à pandemia, academias, parques e espaços públicos foram interditados sob o risco de contaminação, mesmo ao ar livre. Nesse ínterim, questionava-se a irresponsabilidade de quem arriscava umas corridinhas por aí, enquanto mais de mil mortes pelo vírus ocorriam (e ocorrem enquanto escrevo) diariamente. Ao contrário do que se pode concluir, é a menor parte da população que se exercita regularmente, e durante a quarentena digo que fui um desses “atrevidos”.

Pelo menos duas vezes na semana, não me “segurava” e saía para correr, compensando minha “culpa” sedentária com flexões no quarto e polichinelos na varanda. Refletindo mais afundo, talvez não fosse só a busca pela saúde que me mobilizava a burlar a recomendação de isolamento, que por sinal, pelo viés científico era justamente a mais saudável a ser seguida.


Do consciente para o inconsciente


Falar sobre nós é falar sobre nosso passado e nossas escolhas. Assim, olho para trás a fim de compreender como aquele conjunto de fatores que inevitavelmente foi me constituindo com certas características afetou minhas escolhas e direcionou meu olhar sobre a saúde. Lá atrás, joguei futebol com meu pai e primos, fiz natação, fui aluno “nota dez” em Educação Física; mais recentemente, corro e faço musculação há mais de quinze anos; nada em excesso ou de alto nível, mas numa regularidade invejável. Engraçado usar este termo, inveja, talvez ato falho de escrita; não apaguei!


“Invejar” remete à uma fantasia criada a partir da imagem do outro idealizado, há algo identificado nesse outro que desperta interesse em mim e no qual me sinto reconhecido. Podemos então pensar que o ato de realizar exercícios durante a quarentena baseia-se em uma tentativa de aproximar-nos de um corpo ideal e aparentemente inabalável? Seria a vaidade uma força ainda maior que o medo de se contaminar?


Durante os encontros na terapia, o analista por vezes nos corta o discurso, destaca uma palavra, um momento adequado para intervir. E nos aborda de um jeito que dói, que instiga, e me vejo aqui fazendo um movimento semelhante, guardadas as proporções. Portanto, reconhecer, ou pelo menos questionar porque buscamos a saúde para além do senso comum pode ser motivo de uma mudança para melhor, no sentido de assumir que somos influenciados e movidos por algo “não tão louvável assim” como a vaidade, revelando nossa própria insignificância não só perante as forças dos discursos externos que tanto regulam nossos comportamentos, mas perante as forças inconscientes que nos movem e que são tão bem explicadas pela psicologia.


Outro dia, parado num semáforo em uma grande avenida da cidade, observei atletas entrecruzando seus caminhos com uma criança às voltas de seus dez anos, pedinte e que guardava os poucos resultados de sua manhã de atividade numa velha mochila. Questionei-me o quanto valia minha própria busca pela saúde quando, ao meu lado, o básico da sobrevivência faltava a uma criança. O sinal verde surgiu, e as ideias foram evanescendo, bem como a angústia do pensamento.


Neste sentido e baseando-se em Freud, Christian Dunker (2017) comenta que geralmente seguimos nosso caminho na lógica do “eu sei, mas continuo agindo como se não soubesse”, o que é perfeitamente concebível e inclusive, necessário para a própria sobrevivência em algum nível. Assim me pergunto: Pratiquei exercícios durante a quarentena em nome da minha saúde? Furei a quarentena por ela?


Mais do que preocupado com a própria saúde, sou vaidoso. Talvez porque - e aqui também resgato Freud - nossa primeira fase de vida seja “auto erótica”; talvez pelo ódio ser o sentimento fundamental e o amor ser uma construção diária e ininterrupta que nem todos aprenderão. Enfim, na vida privada – ao bom modo narcisista – fazemos escolhas que por vezes desafiam regras simples de serem seguidas em prol de nós mesmos e da manutenção de nossa imagem ideal.


Como propôs Jorge Forbes (2016), neste mundo “desbussolado” que marca nossa ampla (e duvidosa) capacidade de autogestão, talvez as metas diárias de quilômetros percorridos, de quilos erguidos ou de fibras musculares tracejadas para a selfie do dia tragam algum norte, um conforto para atravessarmos nossos dias menos assustados com a depressão que é “poder mais do que se quer”, ou seja, delimitar nossas escolhas e decisões em uma realidade que administramos parcialmente e que, diferentemente de outros tempos nos quais o destino se encontrava amarrado ao sobrenome e profissão dos pais, hoje todos “podemos ser saudáveis”. Essa ideia somada à “positividade na contemporaneidade” carrega consigo seu “quê de mórbido” também.


Encerro assumindo minha condição humana vaidosa e concomitantemente me responsabilizo na disseminação destas provocações, compreendendo que uma boa parcela de narcisismo ou vaidade acompanha o discurso da saúde de seus fiéis seguidores; um discurso ainda distante de muitas camadas deste heterogêneo país. Ter essa consciência pode ajudar a abordar com mais responsabilidade a “saúde”, entendendo a quem e em que contexto falamos sobre ela.


“a redução da vida a processos biológicos, vitais, deixa a vida desnuda, despe-a de toda narratividade. Retira da vida a vivacidade, que a vida é algo muito mais complexo que mera vitalidade e saúde (...) sobra apenas o corpo do eu (...) a saúde torna-se autorreferenciável e se esvazia num expediente sem meta” (HAN, 2017).

HAN, BYUNG-CHUL Sociedade do Cansaço, Vozes, 2017.

DUNKER, C.I.L. Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano, Ubu, 2017.

FORBES, J. Você quer o que você deseja? Manole, 2016.

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